Tocar em determinados assuntos, por sua delicadeza, é como meter-se em palpos de aranha. Deixar de abordá-los, é barrar o caminho de um pensar livre de cabresto. Ao raciocinar sem as travas do preconceito, alcançamos, após algum esforço, o plano das conclusões. O que depreendemos, quando partilhado, vai ser inevitavelmente arredondado ou até contestado por outros na busca de uma geometria mais exata, podendo então ser trabalhado à muitas mentes.
O problema é que o nosso engenho de pensar tem sido, frequentemente, relegado a um cômodo repouso. Demos preferência à reprodução de opiniões, indignações, protestos e revoltas pré-fabricados, disponíveis em várias mídias, incluídas as redes sociais. Basta escolher um lado e nos apropriar dos chavões típicos daquele lado, às vezes vestir uma camiseta. Coisas do tipo: Eu quero é paz…Eu sou é mais…Isto é uma vergonha… Eu me decepcionei com a política…(mesmo sendo o único caminho) Eu não voto mais em ninguém (mesmo sendo mentira) É golpe (mesmo tendo sido) Fora Temer (mesmo sendo o justo) São todos ladrões e bandidos (mesmo sendo quase totalmente verdadeiro).
Ao examinar mais detidamente os tais clichês, percebe-se que eles não representam com fidelidade o som das nossas almas, apenas emulam algumas descargas elétricas e trazem consigo um certo peso opinativo, embora desprovidos de um melhor exame. São de construção fácil e direta. Foram adredemente elaborados para vocalização como a de um mantra. E, como tal pronunciados, acabam por criar uma falsa e passageira sensação de alívio, principalmente quando nos juntamos ao coro do lado que escolhemos. Resumindo, uma catarse.
Esses modelos, que pretendem muitas vezes sintetizar excessivamente os nossos sentimentos, quando somados, passam a rechear alguns compartimentos bastante conhecidos da vida moderna, tal como o do “politicamente correto”, por exemplo. Acabam servindo, muitas vezes, como alegoria do nosso atual momento enquanto sociedade.
Em muitos dos casos nos satisfazemos com as beiradas, nunca buscamos o cerne. Nos contentamos com a superfície, com o visível, mesmo podendo ser uma ilusão de ótica. Como ir mais fundo se o que é colocado na nossa frente, como numa loja de roupas, são apenas os tamanhos de pensar P, M, G e GG ? Pensar de verdade, é terno de corte e talhe pessoalíssimos. Vesti-lo às vezes arranha, incomoda e dói. Talvez por isso venha sendo tão evitado. Esbravejar frases feitas, encontradas prêt-à-porter, conforta, mas não resolve.
Recentemente me detive, de forma especial, sobre a arquitetura abstrata das relações afetivas, combinada com a arquitetura concreta das nossas casas.
Motivado pelo drama pessoal de um casal amigo, que ganhou espaço e notoriedade recentemente na mídia convencional e nas redes sociais, percorri de memória os espaços das minhas casas. A casa da minha infância, a casa dos meus avós e a que consegui construir.
Nessa viagem mental, busquei especificamente dois lugares, em dois planos diferentes, ou seja, no plano concreto e no abstrato. Mirei de forma especial a alcova e a calçada. Em todas as minhas casas as alcovas tinham e têm até hoje a representação simbólica de um cofre, cujas chaves e segredos foram e continuam sendo guardados por apenas dois. Na hipótese de qualquer vazamento incidental, transbordamento ou outro tipo de acidente de percurso, na medida do possível, contenções sempre foram feitas para que não chegasse à calçada, para não animar fuxicos, para não motivar interferências externas impróprias.
No plano concreto a alcova e a calçada podem até ser contíguas, separadas apenas por uma parede, mas possuem características muito diferentes. Uma é privada, a outra pública. A primeira é convencionalmente reservada a dois, como já foi dito. O que acontece no seu interior, só um pode enxergar. É que embora sendo espaço de dois, só um vê o outro e vê-se muito pouco a si próprio.
A inteligência, ao que parece, não socorre o inteligente em tempo integral e de forma multidisciplinar, da mesma forma que assegura àqueles que não a possuem, a visita de algum lampejo.
Num apagão racional esse meu amigo, que está incluso na primeira hipótese, por extrema infelicidade, abriu as portas e as janelas da alcova que dão para a calçada. O desfecho, para os guardiões das chaves e segredos desse compartimento tão importante da casa, não poderia ser mais danoso a eles próprios. Num primeiro momento, transformaram-se em banquete para a maledicência, como é comum nesses casos e até folclórico.
Antigamente o que poucos testemunhavam visualmente e podiam guardar por algum tempo na lembrança, dissipava-se na memória. Para o infortúnio do meu amigo, neste caso, ele próprio deu a dimensão residual do irreversível, ao gravar as imagens do seu conflito e dar azo para que elas chegassem às redes sociais.
Quando isso acontece, a casa pode até continuar existindo no plano concreto, mas dificilmente resistirá ao terremoto subsequente, expostos que foram os atores, como numa caixa de vidro de um reality show.
Por ser uma figura pública, está sendo julgado e execrado muito mais pelo espaço de poder que ocupou, pela sua postura no cargo, do que por qualquer outra coisa. Tire-lhe (como já foi tirado) a patente, sobra o homem e a alma, como no dizer de Jorge Luiz Borges. Se a ocupação do cargo nunca tivesse existido, o olhar lançado sobre as suas culpas seria outro.
As sentenças proferidas pelo grande tribunal das mídias convencionais e das redes sociais, potencializadas pelas manifestações de algumas entidades e de agentes políticos, podem estar vindo inquinadas por um superficialismo impregnado pela emoção e, em alguns casos, até má fé. Na hipótese mais otimista o assunto estaria sendo tratado apenas nos tamanhos P, M, G e GG de pensar.
Quando a vida a dois passa a ser estraçalhada na calçada e, como no caso, amplificada pelas redes sociais, parece não existir mais casa possível.
A alcova então, antes lugar do encontro amoroso, das conversas reservadas, do planejamento do futuro, vai parar, muitas das vezes, nas páginas de um processo judicial, mas não sem antes se transformar em estatística e ensejar brados, alguns de cunho duvidoso e oportunista, partindo de quem ao tomar partido tenta, na realidade, tirar partido. Para essas pessoas, importa muito pouco o drama humano em si e muito mais os ódios acumulados nas escaramuças e contendas das disputas por fatias de poder.
Alexandre Henriques é cronista e ensaísta