Alexandre Henriques
jornalista e cronista
O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, um dos mais celebrados dentro e fora Brasil, deu uma declaração que soou bombástica para o mundo da fotografia.
A calibração perfeita do olhar, o ângulo cirúrgico, a mirada humanitária e a apurada compreensão do mundo real e do mundo das luzes sempre foram elementos indispensáveis para composição da obra fotográfica do autor de trabalhos como Êxodos, Gênesis e de tantos outros.
Suas fotos são marcadas por uma plasticidade e força incomuns, sensibilizando todos os que as tocam com o olhar.
Salgado anunciou recentemente, entre triste e nostálgico, o fim da arte que domina como poucos. Previu, para daqui a vinte ou trinta anos, o seu desaparecimento completo.
Chegou a dizer que “A fotografia está acabando porque o que vemos no celular não é a fotografia. A fotografia precisa se materializar, precisa ser impressa, vista, tocada…”
Diante dessa declaração, fui acometido, talvez como ele, de um misto de apreensão, tristeza e nostalgia.
Pensar que há um pouco mais de três décadas juntei uns poucos caraminguás e ainda fiquei endividado, tudo para comprar o primeiro “daguerriotipo”, ou seja, minha primeira câmara, uma Asahi Pentax.
Como quem ganha um brinquedo novo, saí todo feliz a aprisionar instantâneos de paisagens e pessoas, como se munido de um sofisticado alçapão, engenho capaz de abrir e fechar o próprio olho numa fração de segundo de 1/1000, capturando a presa para sempre, por mais veloz que ela fosse. Depois, corria para a câmara escura, para vê-la surgir na banheira de revelação, como resultado das minhas capturas.
Neste exato momento lanço o olhar para uma pequena foto que tenho em mãos, medindo mais ou menos 6 por 9 centímetros. Consigo, com um olho mais cerebral do que ótico, ir além da fotografia já um pouco amarelada, revestida com tom sépia natural conferido pela química do tempo. A sensação é a de quem toma um bonde em viagem de volta ao passado.
Recorrendo a um cálculo rápido equaciono a datação do instantâneo. Nela meu pai, morto aos 80 anos, aparece com dois outros irmãos. Ele, no centro da foto, tinha quatro anos à época.
Voltei (sem nunca ter ido) ao ano de 1930, emblemático para o País, mais ainda para a Paraíba, protagonista que foi da revolução daquele ano.
Para completar, no verso do retrato, há um carimbo com a seguinte inscrição “Foto Marçal – Picuy – PB”.
As perguntas começam a se amontoar:
Quem teria sido Marçal? Foi ele quem ofereceu seu sofisticado trabalho aos meus avós ou foi iniciativa deles a feitura do registro? Seria uma ocasião especial? Que mídias atuais resistiriam por tantas décadas?
Passaram-se oitenta e sete anos e a foto continua a revelar, com riqueza de detalhes a fisionomia do meu pai e dos meus tios, todos ainda crianças, todos hoje já mortos.
Em fotos mais recentes, de primos, descendentes de vários graus, encontro os mesmos traços, a marca genética dos antepassados, todas identificáveis na pequena foto.
Quantas viagens como esta de agora provocou e ainda provocará a fotografia na qual tenho fixo o olhar, como se quisesse penetrar através de um portal do tempo?
Por fim, a pergunta crucial:
Como uma arte dessa pode morrer?
Em janeiro último morreu sim, aos 92 anos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, tão celebrado em sua sociologia como Salgado em sua arte, deixando para trás um mundo já “líquido”, e que agora tende a gasoso como a fumaça dissipada do seu cachimbo.
Ficaram as suas fotos, muitas por certo em meio físico, demonstrando a sua trajetória. Ficou a sua obra, denunciadora da acelerada mudança no nosso modo de viver e da sensação cada vez mais crescente de transitoriedade da vida e de tudo na vida.
Nada nunca foi menos “pra sempre” do que agora, nem as juras de amor eterno estampadas nas redes sociais, nem a quase esquecida história do avião que caiu matando o ministro Zavasky, tampouco a captura do helicóptero do deputado Perrela, carregado de cocaína. Quem ainda lembra do Porsche que atropelou e matou o agente da Lei Seca? Há alguém preso?
Tudo se encaminha para esquecimento, liquidificado no turbilhão de um mundo cada vez mais empanturrado de informações inúteis, incapazes de gerar consequências, a não ser a de um imenso e angustiante congestionamento cerebral, ao mesmo tempo em que produz uma não menos volumosa dúvida sobre a validade das nossas existências, empanzinados que estamos de dados, os quais não temos tempo de discernir sobre eles, ou mesmo de aferir, separando aquilo que e útil do lixo.
Haverá, em alguma “nuvem”, o registro desses fatos e até de suas fotos, atestando que eles realmente aconteceram, mas ninguém quer mais saber. O melhor para muitos é esquecê-los.
Os mortos do dia exigem seu espaço na cena. Os novos traficantes de cocaína, de influência, de crianças, de mulheres, de órgãos para transplantes; as novas operações policiais e os seus nomes estrambólicos; as delações premiadas, (apenas as que incriminam os inimigos do poder) estas sim, ocupam lugar de destaque nas telas das tevês, dos computadores e, principalmente, dos dispositivos que carregamos constantemente em nossas mãos, em forma de tablets e smartphones. Estes últimos que hoje, pela constância do uso, mais parecem extensões das nossas mãos.
A tecnologia disponível, somada à nossa ânsia, faz com que o ontem pareça um lugar cada vez mais distante do hoje, embora continuem sendo vizinhos.
Nos tornamos Narcisos angustiados, carentes, a todo momento, de uma curtida dada para a imagem mais recente publicada no facebook. Não precisa nem ser uma fotografia, daquelas que exigem o dispêndio de alguma arte ou técnica. Basta apenas ser uma imagem.
Nesse contexto, Salgado está coberto de razão. Tudo pode ser imagem, porém, nem tudo é fotografia.
Não sei se com outras pessoas acontece o mesmo, mas comigo manusear fotografias antigas, provoca uma sensação de inspiradora calma. É como se a roda do tempo desse uma trégua em seu movimento, possibilitando visitar outros mundos, outras épocas. Isso, por exemplo, acontece agora, enquanto tenho sob o olhar alguns instantâneos, a maior parte deles fotografados em tempos imemoriais.
A interferência de fotógrafos como Marçal, por exemplo, foi capaz proporcionar o momento de agora, oitenta e sete anos depois. Graças a Marçal e a tantos outros que dominaram e que ainda dominam a técnica e principalmente a arte de fotografar, um dia seremos todos apenas o resultado dela.
Não, não acredito que a fotografia esteja com seus dias contados. O que talvez incomode Salgado seja a vulgarização decorrente do excesso de disponibilidade na forma de colher imagens, que ao serem registradas, são quase que imediatamente publicadas e depois atiradas em lixeiras virtuais.
Escrever com luz, a meu ver, é a mais sintética, literal e poética das muitas definições de fotografia.
Com essa forma de escrita se expressaram brilhantemente Nicéphore Niépce, Pierre Verger, David La Chapelle e Henri Cartier-Bresso e tantos outros. É com essa escrita que continua a escrever magistralmente Sebastião Salgado.
Em campo um mais restrito de atuação, não foi diferente com Marçal em Picuy, com Antonio Tavares em Melão, com Ludgero Mouzinho e Severino Palmeira, em Cuité. Não foi diferente com Zé Retratista e a família Araújo no Morgado de Costa Beiriz.
Todos tiveram importância vital na documentação dos seus mundos, em suas épocas. Deveriam, portanto, merecer uma melhor atenção e reverência das novas gerações, pela contribuição que deram na construção da memória das suas aldeias, pelo que ousaram e investiram nessa que acredito ser não só uma poderosa ferramenta documental, uma imorredoura expressão artística.