Com direito a barulho de sirenes, motores em alta rotação, pneus queimando o chão e estampidos de bala, ouvi atento a narrativa da ação. Só podia ser um filme. O narrador desenrolava o seu carretel de forma tão realista e para uma audiência tão atenta que sequer notou quando, de soslaio, estiquei o pescoço sobre o muro para saber o que estava acontecendo do outro lado. Voltei sem ser notado, sentei e direcionei os ouvidos para a conversa.
Observei, na breve espiada, que após pelarem o pé de jambo da calçada e feita a partilha da colheita entre os convivas, a fase já era a da degustação, sob a generosa sombra da árvore que plantei há cerca de 30 anos. Eram uns seis ou sete e tinham entre oito e doze anos, dado um tanto quanto impreciso, pois colhido numa rápida mirada. É que o raquitismo dos atores, neste caso, pode ter prejudicado uma avaliação mais acurada.
Uma coisa é certa, o grupo estaria incluso entre os que são empurrados de casa para a cata sazonal de jambos, mangas, cajus, jacas e outras frutas de época. São bandos alegres e barulhentos que se movem nas intercessões e limites da cidade com a zona rural.
Quando questionados sobre o porquê de não estarem na escola naquele momento e sendo na parte da manhã, dizem que estudam no turno da tarde e, se for à tarde, dizem que já foram à escola naquele dia.
Sem se dar conta de que havia mais um ouvinte de forma oculta na platéia, o narrador prosseguiu com o seu relato. Muita bala disparada, umas agudas, outras mais abafadas e, por fim, algumas mais espaçadas e graves, algo como ra, ta, ta, ta / pa, pa, pa /tum, tum, tum, tum. — Mô irmão, eu conheço pelo papôco se é uma “ponto quarenta”, uma pipoqueira ou uma escopeta, tá ligado? Até os “ferro” fuleira como o “três oitão” e “vinte e dois” eu conheço só de ouvir, de olho fechado. — assevera aquele que, pelo tom professoral e o absoluto do ouvido, conquistara a atenção do grupo e a minha para a sua história — debaixo de bala pinota todo mundo, tá ligado? — Arremata o narrador.
O “tá ligado?” encerra quase todas as falas, e está para a narrativa como o “câmbio” esta para as comunicações de rádio nas frequências privadas. Serve como pedido de atenção e também como deixa para a interlocução.
Lembrei do meu tempo de criança/adolescente quando me esforçava para dar realismo às narrativas dos filmes que tinha visto, ocasião em que os contava aos colegas ou ao meu avô. Este último, lembro bem, ria muito das minhas mungangas e onomatopeias; da minha tentativa vã de trazer do rico e dinâmico espaço da grande tela, para as beiradas do forno da casa de farinha, algo que se aproximasse de balas ricocheteando entre cânions, tirando cirurgicamente o chapéu de algum bandido, ou um charuto da boca de um outro, tudo sem feri-los, somente com o intuito da advertência; apenas uma demonstração de destreza no manejo das armas.
O que então levaria a tanto apuro um ouvido tão jovem, capaz identificar as vozes desoladoras de armas cuspindo balas de verdade, tratadas com tanta intimidade, por nome e apelido, que não fosse a própria sobrevivência? Isto me fez ter como certo que a narrativa não era a de um filme e sim vida real, contada de um ponto de vista até então novo para mim.
Me ocorreu o filósofo alemão Walter Benjamin, quando fala da diferença entre relatos de marinheiros e de camponeses. Os primeiros dão voz às suas incursões por oceanos e mares, por lugares nunca dantes navegados (talvez nem por eles). Contam de sereias e monstros marinhos, muitas vezes para plateias ávidas da aventura alheia. Já os camponeses, adstritos a um espaço geográfico menor, não se sentem autorizados a ir muito além das fronteiras de um universo delimitado e conhecido por todos. Tornam-se, pois, mais verossímeis que primeiros.
Identifiquei no narrador, tristemente, muito mais um camponês do que um marinheiro. Preferia que fossem marinheiros, todos, capazes de navegar os mares da imaginação, de singrar o oceano dos sonhos e de, ao alcançarem a juventude, ouvirem do gajeiro o alvissareiro “terra à vista!” sem que essa terra fosse, necessariamente, aquela medida em palmos.
Em situações parecidas, ofereço sacolas para que carreguem os jambos, possibilitando com que desocupem as sujas e rotas camisas transformadas em sacos. Negocio com eles a varrição das folhas e a apanha de galhos e caroços espalhados pelo chão, além de fornecer-lhes água e puxar conversa.
Dessa vez resolvi ficar incógnito, pondo para moer os meus engenhos. Com frequência temos os ouvidos quase que perfurados pela violência do balido apressado e conclusivo, puxado em coro por alguns.
Coisas do tipo: “se trabalhassem não estariam soltos pela rua, fazendo o que não presta” , “deviam ir para a cadeia desde cedo, para aprender” , “são todos noiados”, “a polícia tem que ter liberdade para fazer o seu trabalho” “a polícia prende, mas a justiça solta” e, sem nunca ter ido, visto ou lido, acrescentam, por mera repetição: “nos Estados Unidos não é assim, lá há pena de morte” e concluem magistralmente, com um solene “desse jeito, onde iremos parar?”.
Rapidamente, tais bordões são encampados de forma oportunista e supostamente indignada por Sherazades e Bolsonaros, ícones caricatos e patéticos, notabilizados pelas suas abordagens superficiais e insanas com relação à questões como esta e tantas outras de igual ou maior complexidade. Em suas incursões rasantes, montam uma equação que multiplica simplismo por cinismo, e cujo resultado é sempre desastroso.
Do que ouvi e alcancei processar de forma reflexiva, cheguei sem muito esforço à conclusões um tanto quanto óbvias, tais como: os heróis desses meninos não estão na polícia com seus carros novos, armas, sirenes, fardas e apetrechos semelhantes as da SUAT americana.
Na realidade identificam-se mais com os que “pinotam” quando as “pipoqueiras” e as “ponto quarenta” fazem chover balas sobre eles, em seus territórios conflagrados. Neste caso temos, então, uma guerra em andamento incorporada à nossa realidade, que além de ter passado a ser vista com naturalidade não tem previsão de término. Mais “bandidos” chegando ao “mercado”, aumentem-se os contingentes policiais, multipliquem-se as vagas nos presídios. Voltamos à pergunta do início: onde iremos parar ?
A rosca sem fim da violência continuará a ser torcida. Passa-se a matar em nome da segurança, ao mesmo tempo em que ela é subtraída de todos. Nada que for feito apenas de forma pontual, suponho, deterá essa escalada.
Quando os meninos do jambeiro matam-se entre si, muitas vezes, sequer alcançados pela estatística, pela polícia ou pela justiça. São vítimas cada vez mais cedo da omissão e do desleixo genocida e perverso com que são tratados. É aí que a crônica policial exultante, comemora: foi bandido matando bandido, foi acerto de contas, deixa pra lá!
Muitos dos meninos como os do jambeiro carregam no complemento do “vulgo” apenas o nome das mães. Quando passam a ser conhecidos da crônica policial são tratados como Nego de Hosana, Biu de Lila, Tuta de Maria Preta ou Tico de Inácia, dentre outros. Isto, por si só, vai dando a pista para a elucidação de uma questão simples, a de que foram criados apenas pelas mães, não raro únicas provedoras do sustento da casa, desempregadas, subempregadas ou vivendo de bicos. E o balido, desta feita, volta-se contra as bolsas sociais (renda, família e escola). Ruim com elas, imaginem sem.
Fico pensando quantos dos meninos do jambeiro serão arbarcados pela tarrafa do crime. Me pego a imaginar quanto tempo viverão; quão cedo terão seus “feitos” historiados em inquéritos policiais, transformados processos judiciais, finalizados com uma certidão de óbito precoce, onde deveria constar, no espaço reservado à causa mortis “nossa culpa, nossa imensa culpa”.
Alexandre Henriques