Apesar da sensação de náusea, fui firme até o fim, assistindo a mim mesmo, de forma representada (em tese), no circo do parlamento brasileiro, armado para a votação do impedimento da Presidente Dilma. Não estranhem. Representados sim, por ação ou omissão. Todos nós contribuímos, de uma forma ou de outra para que eles chagassem lá.
O chefe da maioria do bando, tranquilo, como quem ministra uma extrema unção à democracia, permaneceu sereno até quando foi xingado de ladrão, bandido e gangsterpor seus ímpares. Explico o “ímpares”: acredito que poucos, em sã consciência, queiram ser par de Cunha, nem no jargão das corporações e muito menos os que xingaram.
Ao ver a câmara federal por inteiro, deu para ter uma noção de corpo. É como se pudéssemos, pela primeira vez, ter a dimensão e a profundidade do buraco no qual estamos metidos.
De tudo que vi e ouvi, em meio a todo aquele espetáculo burlesco, senti muito mais firmeza nos que não citaram Deus. Talvez não o tenham feito por falta de crença ou, quem sabe, por respeitá-lo o bastante e não tomarem “o santo nome de Deus em vão”, como prescreve o segundo mandamento.
Deus foi o mais lembrado. Depois veio a família, filhos, netos, mulheres, maridos, namoradas e o “meu querido povo”, ao se referirem àqueles que vivem nos lugares de onde muitos farsantes extraem seus votos, recebendo uma procuração para agirem em nosso nome, como fizeram no último domingo.
Na idealização poética de Pepeu Gomes, Deus é menino e é menina. Como não imaginar Deus, divina e infinitamente irritado ao ver e ouvir, em tão curto espaço de tempo, manifestações misóginas, homofóbicas, racistas, enfim, nazifascistas, de forma tão rasgadas.
Já a palavra “família” foi também usada à exaustão pelos dissimulados procuradores do povo. Acho que neste caso, ela tem o significado análogo ao de “famiglia” para a máfia italiana. A “Cosa Nostra” do Cunha.
O ápice veio da declaração de voto de Bolsonaro, cujo eco repercutiu negativamente dentro e fora do Brasil. Com a sua verborragia inconsequente e criminosa, serviu mais a causa dos contra o impedimento da presidente do que a daqueles que a querem ver fora do poder.
Ao retornarem às suas bases eleitorais, já nos aeroportos, os deputados começaram a perceber, pela reação da população, as consequências das opções que fizeram.
Impressiona, neste momento da vida nacional, o cinismo e o despreparo de alguns pseudo historiadores, que conseguem atingir o risível quanto tentam justificar o gesto de Bolsonaro, ao homenagear um dos maiores torturadores postos a serviço da quartelada de 64.
A tentativa de validação de Bolsonaro parte da premissa de que também foram homenageados, na mesma sessão, Lamarca e Marighella. Pelo fanatismo aos regimes de exceção, esquecem alguns veranistas da história que torturadores não têm ideologia, não defendem posições políticas, são apenas serviçais, cuja perversão os deixam, provavelmente excitados, ao submeter pessoas humanas (redundar é preciso) pela força, sem qualquer relação de igualdade e sob o pretexto de arrancar informações a forceps.
Há uma diferença brutal entre um torturador e um guerrilheiro. A guerrilha, é uma guerra em menor escala, de regras semelhantes às grandes guerras. É um insurreição civil. É muito mais uma reação aos regimes de força, do que uma ação. Não concordo com nenhuma das duas, mas ao que me consta os guerrilheiros, pelo menos no Brasil, não torturaram ninguém, muito pelo contrário. O mundo hoje concorda que o torturador comete crime contra a humanidade. Os historiadores de verdade sabem disso.
Um aspecto que ficou patente durante a votação de domingo foi o assustador tamanho da bancada evangélica. Pela troca de gentilezas e elogios durante a votação, os evangélicos pareceram todos da família Cunha. Este fato, por si só, é preocupante à medida em que constitui uma ameaça à laicidade do Estado. Com articulação, poder econômico e a blindagem de que Cunha dispõe atualmente, inclusive diante da Justiça, olhe olhe se ele não tem como plano fundar no Brasil o estado evangélico.
Ainda sobre intercessões inevitáveis entre religião e a política, me chamou a atenção uma declaração do Bispo de Guarabira, Dom Lucena. O religioso, que anteriormente já havia se manifestado favorável ao impedimento da Presidente Dilma, agora defende a sua renúncia. Ao fazê-lo, diverge do consenso criado sobre o tema pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), amplamente noticiado pela imprensa. O pragmatismo do Bispo de Guarabira, a meu ver, parece atropelar o bom senso, principalmente ao tentar uma analogia com a renúncia de Bento XVI e uma possível renúncia de Dilma.
A renúncia do Papa, até onde eu sei, foi um ato espontâneo, um ato de vontade, exercido sem qualquer tipo de pressão (pode ser até que eu esteja enganado, em se tratando de Ratzinger e de Vaticano). Bento XVI saiu pela porta da frente. Renunciar para Dilma, a meu ver, implica confissão de culpa, implica sair pela porta da cozinha para as trevas da história. Talvez o caso dela se enquadre melhor na bem-aventurança inscrita em Mateus 5-6, verbis “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.” O que pode ser traduzido constitucionalmente como “devido processo legal” a que todos, pelo menos até agora, têm direito.
Do macro para o micro e no universo da minha aldeia, observo com alguma preocupação a atitude de alguns que outrora, de uma forma ou de outra pela ação ou mera simpatia, atuaram pela causa da democracia e pelo do estado de direito, contribuindo, portanto, para a difícil travessia até chegarmos à Constituição de 1988.
Pelo que se tem visto nos últimos dias, pairam sobre a Carta Magna sérias ameaças, capazes de afetar, para pior, a vida de muita gente, principalmente a dos mais humildes. Para cada notável jurista que defende o impedimento de Dilma há pelo menos dez que fundamentam teses no sentido contrário.
A necessidade de defesa desses valores construídos com tanto sacrifício, não pressupõe filiação partidária ou sequer simpatia por agremiação. Hoje, na comodidade de algumas sinecuras, alguns agentes ativos do passado, mesmo com o advento das redes sociais, pouco ou quase nada se manifestam, seja de sim ou de não. Acredito que o importante mesmo, por imposição do momento é o saudável exercício da reflexão e o consequente anuncio das conclusões alcançadas por cada um. Ser e parecer e anunciar, neste caso, torna-se imperativo histórico.
Alexandre Henriques é jornalista e ensaísta