Alexandre Moca
Devo começar dizendo que não tenho nenhuma simpatia especial por vaquejada. Não acho que seja esporte, tampouco que o vaqueiro possa ser considerado um atleta. No meu parco entender qualquer esporte pressupõe uma certa igualdade de condições, além de um grau de dificuldade que honre a conquista. Além disso, que haja a consciência de que todos os envolvidos no certame, antecipadamente, saibam tratar-se de uma competição. Uma compreensão difícil para bois e cavalos, convenhamos.
Dois homens, dois cavalos e apenas um boi na outra ponta, francamente, não traduz, nem de longe, qualquer sentido de igualdade.
A disparidade se torna ainda maior se considerarmos, por hipótese, a racionalidade dos humanos sobre os cavalos. O boi, do outro lado da contenda, seria uma mera bola, como no caso do elegante pólo, apenas com a diferença do avantajado peso e da vontade de escapar da perseguição.
Dito isto, antes de ser engolido por algum apreciador mais exaltado das festas de mourão, aproveito para me unir à estranheza e ao protesto dos vaqueiros, com relação à recente decisão do STF em proibir as vaquejadas, principalmente sob a frágil justificativa de maus-tratos ao boi, embora a rês seja quase sempre vítima da queda em uma caixa de areia, chamada pelos “desportistas” de “faixa”.
Na grande e infinita maioria das vezes (há estatísticas nesse sentido) a queda não traz qualquer consequência para a sanidade dos animais. Como se não bastasse, o boi é um bem semovente de razoável valor. Poderia, nesse caso, em havendo risco iminente de morte ou maus-tratos, gerar um prejuízo econômico ao seu proprietário.
A vaquejada, queiram ou não, é um momento de festa e de congraçamento para os que vivem na lida diária com o gado de solta, principalmente na caatinga, perseguindo rês desgarrada, enfrentando, em suas montarias, os paus e as pedras de um chão ressequido. Nessas buscas, os vaqueiros dão de cara com traiçoeiros espinhos de jurema e de outras espécies vegetais ariscas do semi árido. Tais encontros abruptos acabam por levar, muitas vezes, pedaços de pele e carne, deixando marcas indeléveis nos rostos dos que vivem nessa lida.
Acrescente-se a tudo a impiedade do sol, no seu causticar diário, a encarquilhar tudo que é vivo. Nessa hipótese, qualquer semelhança com esporte passa ainda mais distante, por tratar-se muito mais de uma luta diária pela sobrevivência, onde homens e bichos são parceiros, em condições comumente muito adversas.
Em meio a tantas dificuldades, o momento desejado e ansiado por todos, muitas vezes de ciclo anual, é o da festa de mourão, é o encontro, a confraternização entre os vaqueiros. A vaquejada torna-se então palco para a exibição da destreza e do treino dos participantes. No mais, serve para repassar às novas gerações, técnicas de manejo de gado em campo aberto, muito comum no Nordeste, onde para se engordar apenas um boi de solta é necessário um hectare ou mais de terra.
Os juízes do STF, com a prerrogativa constitucional de acertar ou errar por último, numa só canetada, foram de encontro a uma das mais ricas e arraigadas tradições culturais nordestinas, embora um pouco desvirtuada, nos dias atuais, por um excesso de penduricalhos midiáticos que certamente enfraqueceram a tradição e deixaram muito à mostra os seus aspectos mais negativos, com uma ênfase exacerbada à submissão dos bichos aos homens, que acontece desde que o mundo é mundo, causando estranheza apenas a alguns falsos puristas, muitas vezes mal intencionados e à cata de visibilidade. O mesmo acontece com os simplistas de plantão, incapazes de um discurso melhor fundamentado na defesa de suas posições, e que observe com maior profundidade os diversos ângulos que envolvem a questão.
Aos que mastigam alcatras, filés e picanhas, enquanto discorrem sobre a crueldade praticada contra animais, fazendo com que a suculência de tais cortes escorram pelo canal da sopa, como diria o escritor português José Saramago, seria de bom alvitre assistir ao sacrifício dos animais nos matadouros públicos rudimentares, sem a fiscalização sequer dos órgãos ligados à vigilância sanitária.
Nesses lugares homens, tapurus e urubus dividem o mesmo palco de imundice e crueldade. Os bois são sacrificados com um golpe de machado entre os chifres, ou são choupados, com uma pontiaguda lâmina de dois gumes que desliga o sistema nervoso central da rês e a faz cair sem forças. Em seguida, nos dois casos, suas gargantas são cortadas deixando esvair todo o sangue nos pisos dos imundos abatedouros. Um espetáculo de embrulhar o estômago de Jack o Estripador e de deixar excitado, no tocante a crueldade, pessoas com o perfil do coronel Brilhante Ustra, se é que ainda existe gente desse tipo.
Penso que, mais uma vez, no íntimo mais profundo de alguns julgadores, nós nordestinos somos frequentemente reduzidos a uma subespécie formada por bárbaros, mal amanhados, apenas com mais resistência à sede e muito mais mal tratados do que os bois que caem, vez por outra, na “faixa” das vaquejadas, enquanto não são transformados em cortes nobres. Caem sobre fofas caixas de areia, antes de caírem entre os dentes dos habitantes de um país que há muito elegeu a carne bovina como uma de suas principais fontes de proteínas.
Apiedar-se dos animais e dos seres vivos de uma maneira geral, seria decretar com essa mesma caneta, que proibiu as vaquejadas no Nordeste, que nenhum boi ou homem morra mais de sede ou de fome no Nordeste prometido, comparado pelo escritor José Américo de Almeida, certa vez, com a terra de Canaã. Coisas simples, como a conclusão dos 20% restantes da maior obra hídrica de que se tem conhecimento no planeta, qual seja, a transposição do Rio São Francisco.
No entalhar da sentença condenatória da vaquejada, prolatada pelos que se protegem sobre acetinadas capas pretas, os gibões e peitorais dos vaqueiros nordestinos foram transformados em togas sem qualquer valia. Para muitos do sudeste, como temos visto recentemente, sequer aprendemos a votar. Por qual motivo então deveríamos ter as nossas tradições culturais respeitadas se, para alguns desses julgadores, os nossos vaqueiros continuarão sendo, como na visão de Euclides da Cunha, um bando de Hércules- Quasímodos.
Obedeceria uma lógica muito mais razoável se os tais maus tratos fossem coibidos, como já são pela lei, numa ordem hierárquica de crueldade, começando pelos matadouros e confinamentos para, somente depois de sanadas essas brutalidades, com aplicação de técnicas industriais modernas, os rigores da lei alcançarem as festas de gado.
Se assim for feito, tenho certeza que terá valido o boi, como no refrão da música popular e no grito dos locutores das vaquejadas.