E Antônio do Amaral, dileto e bom amigo, foi me lembrar que, há exatos cem anos, nasceu Orson Welles, diretor do célebre O Cidadão Kane.
Quem for da minha geração, tenha morado onde morei e pertencido ao mesmo extrato social e econômico que eu, terá memorizado, na cota do inesquecível, o impacto da primeira visão do mar, da primeira viagem a uma cidade maior do que sua e da primeira ida ao cinema, dentre outras primeiras vezes que não caberiam neste texto.
Vi o primeiro filme em um armazém de sisal, numa cidade onde a energia era gerada por um motor de luz, os postes eram feitos de trilhos de trem e os banquinhos para sentar e ver o filme eram trazidos de casa. Não faz tanto tempo assim. Só existo há pouco mais de meio século.
Nas três situações as doses de emoção foram cavalares para uma criança, cujo destino a empurrou, mais tarde, numa cidade bem maior, para as vizinhanças de um cinema grande, de verdade, com sessões todos os dias. Minha casa ficava numa esquina, o cinema na outra, separados apenas por um beco. O cinema era o São José, em Guarabira, hoje teatro.
Desejei, certa vez, que meu pai mudasse de ramo. Seria dono de um cinema, como o pai do meu amigo Carlos Cardoso. Estaria tudo resolvido. Veria filmes todos os dias, sem a chatice de pagar ingresso, sem ter mais que enfrentar a cara sisuda de Cassimiro, o porteiro, um homem cujo ofício, supunha, não o permitia que risse. Tenho a impressão que só ria quando chegava em casa, à portas fechadas. E riria do quê? Por certo, da minha cara assustada nas vezes que aproveitando o tumulto do início da sessão, ia me esgueirando até estar dentro do cinema, sem ser percebido pelo porteiro, ou pensar que não havia sido. Vez por outra, era fisgado pelo dedo de Cassimiro, transformado em gancho, como o dos piratas do filme, cravado na parte de trás da gola da minha camisa.
Nessas ocasiões, a cena era chaplinianamente muda. Estava tudo subliminarmente entendido, até o “não insista, senão eu digo a seu pai”. Não demorei perceber que, nas vezes que logrei êxito, foi de forma consentida. Passei a vê-lo com outros olhos. Ficamos até meio cúmplices, silenciosamente. Pouco tempo depois dos nossos cinemas tranformarem-se em salas de espera para o céu, clinicas ou lojas, encontrei Cassimiro. Ele e o seu inseparável guarda-chuva, chovesse ou fizesse sol. Numa dessas oportunidades, já adulto, puxei conversa e, para minha surpresa ele riu, embora com algum comedimento, é claro. Este momento raro se deu quando o porteiro, me apontando com o indicador, disse a um amigo com o qual conversava: “esse aí me deu muito trabalho.”
Falar dos cinemas de Guarabira é rebobinar prazerosamente o tempo, como em um carretel imaginário e ir colocando papeizinhos nos pontos de quebra da fita, para não esquecer as emendas, assim como faziam os técnicos que operavam as máquinas de exibição, a exemplo de Galego do São José e Dedé do Rádio que, antes de ser deste, foi do Cinema São Luiz.
Nessa abordagem, ir entrando direto à sala de exibição, seria deixar para trás o seu entorno, seria subtrair boa parte da fita desse carretel. Como esquecer os vendedores que se acomodavam no beco a exemplo de dona Maria Boi e do velho Alfredo, com o seu jeito peculiar de anunciar a vendagem: “Pritomba, madurinha..”, pregão repetido à exaustão, como se fosse um disco de vinil com defeito.
Na composição do estático da cena estariam o fiteiro de Ademar e o de Antônio, irmão de Neco Pata. No mesmo complexo, o caldo de cana de Alceu e a padaria de Antônio Freitas, ostentando, no topo da empena voltada para praça, a pintura de um Santo Antônio, em óleo, inspirado, por certo, em alguma iluminura. Na praça ainda arborizada, a sinuosa cobra de ferro chumbada no piso, parecendo tão viva que à noite chegava a assustar os incautos. Tal escultura fazia parte de um conjunto simbólico criado por Augusto de Almeida em sua passagem como prefeito, a exemplo da representação escultural de Adão e Eva na entrada do cemitério e da ação do vento sobre as folhas das casuarinas plantadas por sua determinação na ala central do mesmo cemitério, cujo atrito, nas tardes de brisa frouxa, produziam um som semelhante ao de um pranto lamentoso. Voltemos à praça do cinema São José para cuidar da dinâmica da cena.
Se me fosse dado operar a moviola do tempo, daria várias e rápidas voltas para trás até localizar o ponto de início de uma cena cujo desenrolar se deu no cenário já descrito e que impressionaria qualquer diretor de filme de capa e espada dos que já tinha visto até então. Do meu posto, nos galhos mais altos de uma castanhola, como se estivesse na comodidade de uma grua, podia observar tudo que se movimentasse em 360 graus. O diretor grita: ação.
Um homem de estatura mediana e andar apressado, passa em frente ao Colégio Santo Antônio, descendo a ladeira, em busca do centro da cidade. Nada importante seria esperado se, em uma das mãos, não carregasse algo embrulhado em uma estopa e, sobre o rosto, um balaio, trançado de cipó e taboca, que lhe escondia metade do corpo, ou seja, até a cintura. Via para onde ia e onde pisava apenas pelas frestas do fundo do balaio. Era como se quisesse passar pela praça do cinema sem ser percebido. Pura ingenuidade.
Escondido por trás da mureta do jardim da casa de Divaldo Rocha, Luzemberg, filho de dona Lindalva do Gaúcho, já o esperava. Estava para acontecer uma explosão de ira que bem poderia ser medida em megatons e cuja ignição estava relacionada a apenas duas palavras, de importância semelhante ao “abre-te sésamo” para o filme de Ali Babá e os 40 Ladrões.
Ditas as palavras, o pobre infeliz joga para um lado o balaio, desembainha da estopa uma foice e sai girando sobre o próprio eixo, como fazem os lançadores de discos em suas competições olímpicas, só que sem largá-la, tinindo-a vez por outra nas pedras do calçamento, tirando fogo do chão. Com os dentes trincados, urra e depois despeja um destampatório de palavrões e insultos carregados de cólera, alguns, até então, ainda desconhecidos do meu pobre glossário, a exemplo de “infeliz das costas ocas” e “triste da pancada do sino”.
Só sei que as ofensas eram fortes e graves, porque as mulheres já iam providenciando um pelo sinal da santa cruz, benzendo a boca e balbuciando o célebre “o sangue de Cristo tem poder” e, com espanto, arrematam, “Jesus, Maria, José…” Era como se estivéssemos perto do juízo final.
As portas e janelas das casas vão se fechando, sequencialmente, enquanto o colérico continua sua invocação: ”apareça condenado, para eu picá-lo de foice. O maior pedaço que sobrar vai caber dentro de uma caixa de fósforo”. Toda essa fúria, desencadeada por conta de apenas duas palavrinhas: padeiro corno. Realmente o era, só não aceitava ser chamado.
O clímax da ação se dá quando, como um toureiro que cansa o touro para em seguida sacrificá-lo, Luzemberg pula para fora da mureta e, mais uma vez, chama o padeiro de corno, seguido de um “nem me pega! ”. Com asas nos pés, do alto dos seus 14 ou 15 anos, se deixa perseguir pelo padeiro. Numa aproximação perigosa, fica frente a frente com ele, encurralado na escada do cinema São José, ainda fechado. Como nos filmes do gênero, com impressionante agilidade, faz de escudo um cavalete de eucatex, onde eram apostas as fotografias de cena do filme em cartaz. Cidadão Kane era o filme. Com todas as forças que lhe sobraram, o padeiro desfecha um poderoso golpe que acerta entre a testa e o chapéu de Kane. Fosse ele de carne e osso, teria tirando-lhe o escalpo, como faziam os apaches, antes que ele pudesse se despedir da vida pronunciando como última palavra o enigmático “Rosebud”.
Com a foice presa ao eucatex, o padeiro viu fugir a sua presa em desembestada carreira pela rua do Boi Choco, sumindo como um raio pela ponte de ferro.
Prostrado na escada do cinema, em pranto convulsivo, o padeiro entrega, sem resistência, a arma que ferira Kane ao cabo Arruda. Este, junto com soldado Boró, o conduzem, à pé, pela pela Rua Doutor Sales, como se fossem em direção à cadeia. O cortejo é seguido por dezenas de curiosos. Ao chegar na praça da Rua do Sol, o cabo Arruda olha para o padeiro e diz: “ Vá para casa, homem de Deus ! Deixe de ser neurasténico ! A foice eu só devolvo quando você se acalmar.” O padeiro ganhou a Rua Deodoro da Fonseca e, em seguida, o Beco do Cedro, acesso mais rápido ao Xamêgo, hoje Bairro do Nordeste, onde morava com a sua amada. Voltando-se para o cortejo os curiosos, cabo Arruda dispara: “ E vocês ai, não têm o que fazer? Dando as costas aos circunstantes, o cabo sai caminhando tranquilo. Ainda dá para ouvir o seu comentário com o soldado Boró: “Queriam o quê ! Além de corno, preso ?” Sobem os letreiros.
Para falar dos cinemas de Guarabira e de suas histórias, um livro seria pouco. São José, São Luiz, Avenida (Puguinha), Moderno. Seu Joquinha, Antônio Lucena, Laurita, seu Madruga, Cassimiro, seu China, Chiquinho, Pinheiro, Baraúna, Albenides, Cambeta, Jaime Cardoso, os Beneditos. Fica para outra vez.
A foice do padeiro não alcançou Luzemberg, mas a foice da morte, esta sim, como na película “O Sétimo Selo”, do sueco Ingmar Bergman, não o dispensou. Primeiro ele sumiu da cena da praça, pouco tempo depois, da cena da vida. Tétano ou leucemia, não lembro bem. Ficaram apenas as histórias do menino valente, traquino e irreverente, que topava arriscados desafios, como o de colocar rabeira de papel no paletó do Juiz, enquanto este comprava o ingresso para ver o filme.
Este, sem duvida, foi o meu primeiro contato com o Cidadão Kane, que veria mais tarde e por mais vezes, como quem quer tirar mais suco do que a fruta pode dar. O fiz agora e, como sempre fui descobrindo mais e mais sobre o intrínseco que passou despercebido de outras vezes, aquilo que ainda achamos escondido sob o manto da genial direção de Welles. Obrigado Amaral pela lembrança.