CASO CHARLIE HEBDO – A Europa Medieval na Pós-Modernidade
Risco é o necessário não saber de cada saber. E, portanto, quanto
mais se incrementa o saber, mais se incrementa o risco.
Raffaele De Giorgi
O céu do mundo Ocidental deixou de ser blu. O marketing, de ambição universal, francês, liberal, burguês e iluminista foi maculado: Liberté, Egalité, Fraternité. Produto de consumo (bens duráveis) para a periferia da sociedade moderna. O episódio conceituado como ato de terrorismo e intitulado, pela comunicação social francesa e internacional, de caso CHARLIE HEBDO fez ressurgir o pensamento dual que caracteriza a matriz cognitiva medieval e moderna do mundo Ocidental: Je suis Charlie versus Je ne suis Charlie. Ou se está de um lado, ou se está do outro. O cartesianismo, como metodologia de busca pela verdade científica, que estava fora de moda, reaparece na (pós-modernidade) condição pós-moderna de JEAN FRANCOIS LYOTARD, a farsa que explica a não-explicação.
O referido episódio que, segundo a comunicação social, motivou a ida mais de 3,5 milhões de pessoas às ruas de Paris, numa marcha contra o terrorismo também fez chegar à capital francesa uma série de líderes mundiais. A foto é emblemática, a fileira de chefes de Estado marchando em solidariedade à tragédia ocorrida com os cartunistas do CHARLIE HEBDO, em companhia do Primeiro Ministro francês MANUEL VALLS e da “mulher de ferro germânica” ANGELA MERKEL. Os personagens (alguns) que aparecem na foto são tão ou mais terroristas do que aqueles que fulminaram com a vida dos cartunistas, segundo o próprio conceito de terrorismo formulado pelo pensamento eurocentrista.
Fiquei com uma enorme dúvida: teria mais terrorista no edifício do CHARLIE HEBDO ou na foto formada pelos chefes de Estado? As manchetes são inequívocas: as charges não são contra o Islam e sim a efetividade da expressão de pensamento e liberdade de expressão direcionada aos radicais, extremistas e terroristas. Obviamente. Se a Europa reconhecer que as charges são contra o Islam estará reeditando o período medieval e a expulsão dos mouros, ou seja estará dando um passo para traz de mais de sete séculos. Não há dúvida, seria a Europa medieval na pós-modernidade.
Será que vem por ai uma onda islamofóbica que cumprirá a função de garantir os interesses econômicos e políticos (e o domínio cultural) do Ocidente com a argumentação retórica dos valores ocidentais? A terminologia da moda é: liberdade de expressão. Quando o garoto de Kӧnigsberg, IMMANUEL KANT, dedicou centenas de páginas à formulação do conceito de iluminismo, uma das argumentações centrais aparecia mediante a expressão Limites. O iluminismo, portanto, seria a identificação dos limites construídos nas relações de Estado e Sociedade que fundavam o mundo moderno. Indagação: quais os limites da liberdade de expressão? Ou a liberdade de expressão não tem limites? Mas a França é iluminista. Ou é pós-moderna. Mas, o que é ser pós-moderno? Ser moderno sabe-se: reconhecer os limites. Liberdade de expressão é ofender símbolos sagrados? Extrapolar qualquer limite de respeito? Construir apologia ao desrespeito, à agressão e ao preconceito? E o governo francês não é responsável por aqueles que estão em seu território? E as armas utilizadas, entraram por onde? É uma republiqueta das bananas?
E, por incrível que pareça, a comunicação social internacional esqueceu que a França protagonizou um período do colonialismo na África. Esqueceu dos interesses econômicos (petróleo) de grandes grupos franceses quando da invasão do Iraque pelos USA, com total desconsideração a uma resolução da ONU. Assim como esqueceu os atuais interesses e negócios (o mundo sombrio do armamento internacional) de Estado que a França protagoniza em países como Líbia, Síria etc.
E ontem, não é que aparece na Folha de São Paulo texto de CLÓVIS ROSSI intitulado Porque não fomos Charlie, na sua coluna. Letras indignadas com a inércia tupiniquim para com a tragédia do CHARLIE HEBDO, com a afirmação “o silêncio ensurdecedor do Brasil após o atentado”. O texto ataca a Presidência da República e as relações exteriores do Brasil, conclama a população brasileira a ir às ruas em forma de manifestação solidária à liberdade de expressão do CHARLIE HEBDO.
Ora, CLÓVIS ROSSI, por onde tu andas? Quais as observações que tens construído? O texto do colunista da Folha de São Paulo – o jornal de apoio à ditadura militar, o jornal da afirmação da Ditabranda – traduz a cegueira dos observadores tupiniquins. Obviamente que não se pode (ou se pode, para alguns) argumentar de forma a legitimar o ato de homicídio coletivo acontecido com os cartunistas do CHARLIE HEBDO. E não vou argumentar de forma a construir uma realidade lingüística de defesa de algum dos lados que se possa enxergar num episódio em que a complexidade é evidente.
As expressões de solidariedade da comunicação social tupiniquim (pseudos jornalistas) e de alguns intelectuais chegam a parecerem latidos de vira-latas, periféricos de pensamentos eurocentristas. No entanto, a escolha será pela argumentação da cegueira tupiniquim que se comove com a tragédia alheia. Não se vê nas letras da comunicação social tupiniquim e nos textos dos intelectuais periféricos-eurocentristas uma frase para com as tragédias próprias que batem às portas da Nação de Zé Carioca.
Ora, CLÓVIS ROSSI e companhia limitada, dêem uma olhada para os mais de 50 mil homicídios registrados no ano de 2014 no planeta chamado Brasil. Em sua maioria contra a vida de jovens negros e periféricos, homicídios que ocasionam na sucumbência de famílias esquecidas pelo país das maravilhas. Ora, jornalistas e intelectuais, dêem uma olhada nos números que informam os milhares de mulheres assinadas dentro e fora dos seus lares, por seus maridos, companheiros e familiares. Ora, gênios da lingüística e comunicação, dêem uma olhada nas estatísticas que registraram no ano de 2014 a cifra de mais de 50 mil casos de estupros que dimensionam o desenvolvimento das relações humanas de caráter sexual na formação do selfie do ser tupiniquim. Ora, não farei menção à realidade ligada ao trabalho escravo nas fazendas do Brasil central e outras regiões; não farei menção à exploração do trabalho infantil e a exploração sexual de crianças e adolescentes inequivocamente comprovadas por ONGs nacionais e internacionais, assim como por órgãos do Estado.
Ora, CLÓVIS ROSSI, antes de andar a DAVOS, como menciona no seu texto, direcione sua preocupação para com a corrupção como um dado histórico e cultural vivido nas relações sociais do ser tupiniquim. A corrupção que foi institucionalizada no país (faz décadas) como instrumento metodológico de se construir a governabilidade republicana da Nação verde-amarelo. Dirija sua preocupação, não para com a inércia da população brasileira, mas sim para com a gravidade da corrupção que assola o país, bloqueia e inviabiliza a construção de outro futuro possível para a Nação continental.
Para tirar…..meu Brasil dessa baderna
Só quando o morcego doar sangue
E o saci cruzar as pernas
(Bezerra da Silva – Quando o Morcego Doar Sangue)
Ora, nossas preocupações devem sim ser apontadas para os problemas que comprometem e inviabilizam o bem-estar e a vida comunitária em terras da Nação das mil cores. Nossas preocupações devem ser objetivadas para o nosso presente, e assim interpretá-lo para diferentemente construirmos um futuro para todos. Devemos, sim, lançarmos nossos olhares para as complexidades da Nação inventora da alegria como método de ocultar toda a sua infelicidade, e ultrapassarmos esse presente com a construção de um futuro sem ocultações.