Por Alexandre Moca
O “Madame” lhe caía como uma luva, tinha o porte. O “Arara”, há quem diga, foi coisa de Zé Tavares, dentista, implacável observador e assíduo dos cabarés de Guarabira. O apelido grudou como cola, mesmo sem protestos por parte da apelidada. Na verdade chamava-se Maria de Lourdes Rocha Evans Heynom, morta aos 82 anos, durante o último carnaval.
Seus dois últimos sobrenomes, herdados do casamento desfeito, não indicam ser estrangeira nem afetam a declarada origem esperancense, lembrada pelo falecido jornalista Jacinto Barbosa com orgulho de conterrâneo, como orgulhoso era de tudo que se referia Esperança, sua terra. Quando se tocava no assunto, Jacintão apressado registrava: “A Madame foi amiga de mãe…” “na infância”, fazia questão de enfatizar. Foi muito bonita na juventude, segundo os relatos de Dona Maria Barbosa, mãe de Jacinto.
Capitã de longo curso na vida noturna trouxe para Guarabira toda a sua experiência como dona de cabaré que foi em outras cidades do Nordeste.
Quem a visse pela primeira vez, dificilmente associaria o apelido às coloridas caftas que costumava vestir, mas se remeteria imediatamente ao formato do seu nariz, em nada parecido com o da foto de quando era nova. A brincadeira de Zé Tavares virou uma marca registrada. Para forçar certa ambiguidade e tirar foco do motivo da alcunha, uma arara lhe foi presenteada por um cliente. A ave passava o dia em uma castanhola, com uma correntinha presa ao pé. Naquele tempo não se falava em Ibama ou em juizado da infância e da juventude, senão eu, a arara da castanhola e dona da casa estaríamos maus lençóis.
Lourdes Drinks, assim escrito, constava apenas no alvará da prefeitura, no cartão de visitas da dona e em BO’s da polícia. O cabaré de Madame Arara, propriamente dito, teve seu apogeu entre as décadas de 70 e 80 e ninguém imaginava que a razão do sucesso viesse de tão longe, do oriente médio, ou melhor, tivesse relação com a crise do petróleo. Enquanto no oriente deixavam cada vez mais estreito o Estreito de Ormuz, por onde passava e passa, até hoje, mais da metade do petróleo consumido no mundo, o governo daqui fazia jorrar um imenso poço de dinheiro chamado Proálcool. O cabaré vivia apinhado de senhores de engenho, que adoçavam com o dinheiro fácil dos bancos estatais o amargo da vida das meninas, em tardes/noites de muito rum cerveja e música.
Nos idos de 1973, os cabarés, de um modo geral, começavam a mudar de formato. Já não era tão intenso o intercambio que tinha no trem importante suporte logístico.
Antes de o cabaré Estrela entrar em declínio, a rota das moças descabaçadas e postas para fora de casa pelos pais, como era comum na época, começava, não raro, pelo Rosa Branca de Timbaúba, em Pernambuco, comandado por Lú Pintada, passava pelo Carretel em Itabaiana e a Estrela, em Guarabira, onde à noite fervilhavam as casas de Zefa Morais, Helóia, Maria Helena, Índia, Cesarina, Nenem Progresso, Dulce, Naíde e tantas outras.
De Guarabira seguiam sobre os mesmos trilhos da Great Western/Reffesa para o Sapo, em Nova Cruz, até chegar a Rita Loura ou Maria Boa em Natal. Há quem diga que era como um processo de graduação. Se de Guarabira pendessem para o Eldorado em Campina Grande, era um mestrado. Já uma estada na capital Potiguar, nos renomados cabarés frequentados “até por americanos”, valia um doutorado.
Quando pegavam o trem de volta, a conversa era outra, o nome era outro, a cor do cabelo não era a mesma, o cachê então, nem se fala. Totalmente fora do alcance da meninada. Coisa para gerente de banco, senhor de engenho ou fazendeiro de gado.
Vizinha de outra casa famosa, a de Francisquinho, o cabaré da Madame passava a ganhar espaço para o da Estrela pelo ermo do lugar escolhido. Era frequentado apenas por quem possuía automóvel ou tinha dinheiro para pagar carro de aluguel. Além do mais, ficava fora da alça de mira das esposas ciumentas e escandalosas que, vez por outra, irrompiam cabaré adentro flagrando seus maridos com a boca na botija, criando um enorme constrangimento.
Mesmo sendo longe, não deixava de receber a visita de bigodetes sem dinheiro como eu e tantos outros, cotizados para o transporte e para a cerveja, no rastro do viço das meninas. Nós não tínhamos renda, sequer para uma prenda, ou corte de cetim, como na canção de Chico Buarque, porém, no meu caso, não tardou a maioridade e um concurso para recenseador do IBGE quase me fez rico, temporariamente.
Ganhávamos por produção. Rui Diocleciano, pai da advogada/jornalista Narriman Xavier, funcionário graduado da Estatística, me colocou para trabalhar no Bairro Novo, que de tão novo só tinha ruas banguelas de casas. Fiquei indignado e reclamei. Fiz cara de prejuízo. Fui atalhado por Rui, antes de concluir o meu protesto. ”Quer dizer que você não quer fazer o Censo nos dois cabarés do bairro Novo, ambos considerados domicílios coletivos, com remuneração dobrada por morador e, além do mais, sob a minha supervisão?” Processei a informação com a velocidade e um computador da NASA. Desculpe Rui! Tá certo Rui! Obrigado Rui! Parti para o trabalho.
A experiência me rendeu, dentre vantagens circunstanciais, conhecer melhor a vida da Madame e das moças do seu cabaré. Tive que ir e voltar várias vezes, durante o dia, para não atrapalhar a atividade que, em algumas ocasiões, começava mais cedo.
Entrevistei todas, inclusive a Madame. Fiz as perguntas que constavam do questionário do IBGE às quais acrescentei algumas motivadas pela minha curiosidade. Tive a bisbilhotice freada, algumas vezes, pelo embargo das lágrimas de algumas das entrevistadas ou, pelo nó da minha da própria garganta. Seria enfadonho repisar essas histórias de vida que nada acrescentaria de novo ao que já foi fartamente romanceado por autores como Jorge Amado e Gabriel Garcia Marques, só para citar dois grandes expoentes latinos americanos. Mas, se tivesse de comparar a Madame a algum personagem literário, o faria com Pantaleão, de Pantaleão e as Visitadoras, do peruano Mario Vargas Llosa. Sua austeridade e profissionalismo serviam para organizar e harmonizar os hormônios em profusão e para acalmar as paixões voláteis como o álcool que bancava a toda a farra, da dorna à mesa. Afinal, eram e tantas histórias de vida diferentes, tendo em comum o mesmo laço chamado prostituição.
A incursão humana e estatística me fez reforçar a ideia de que viver em um cabaré e tirar o sustento da prostituição, nem de brincadeira pode ser considerada uma vida fácil. A luz do dia dissolve com rapidez o falso glamour da noite. O que para os frequentadores noturnos era diversão transformava-se, no dia seguinte, em muito trabalho para quem herdava o cabaré cheio de copos, mesas e cadeiras sujos: bitucas de cigarro pelo chão e bêbados refratários a serem expulsos. A exceção era para as teúdas e manteúdas dos novos coronéis do álcool, que podiam dormir até mais tarde. Todas as outras pegavam no pesado.
Os cabarés em Guarabira desapareceram há muito tempo por uma série de fatores sócio, econômicos e culturais, dentre eles, sem dúvida, está a flexibilização de alguns dogmas morais.
Os rapazes de hoje já podem chegar mais perto das moças de saias que já não são plissadas, dos colégios que já não são das freiras. A prostituição, por seu turno, não deixou de existir, pelo contrário, pulverizou-se e, como sempre, mantém-se sócia da ignorância, da pobreza e da miséria.
Zé Gouveia, sagaz observador da cena guarabirense, já falecido, por cuja bodega ainda passam até hoje todos enterros destinados ao Cemitério Velho, interrompeu o discurso de um falso moralista de plantão, quando este dizia que um tal senhor de engenho que acabara de passar pela porta da bodega, havia gastado tudo que tinha com bebida e rapariga. Gouveia, sem perder o ritmo do trabalho, perguntou ao moralista e aos demais ancorados em seu balcão, se alguém conhecia alguma rapariga, dona de cabaré ou não, que tenha ficado rica, e mantido sua riqueza até o final da vida. Ninguém soube informar. Gouveia então finalizou: “Nunca vi uma rapariga virar dona de fazenda, ou criando uma cabra que seja. Esse safado, eu conheço, ele perdeu tudo que tinha por incompetência e preguiça para trabalhar, torrou toda a herança do pai, mas que gozou muito, gozou”
A expansão da cidade deixou o que era longe, perto. Não existem mais ruas banguelas no bairro Novo. No lugar onde era o cabaré foi plantado um edifício residencial. A rua hoje é passagem obrigatória de romeiros e penitentes que vão ao memorial Frei Damião, pagar promessas ou rezar para purgar pecados.
A Madame, convertida ao Evangelho e morando em João Pessoa nos últimos tempos, teve a sua vontade respeitada e foi sepultada em Guarabira, onde certamente viveu os melhores dias.